A inspiração do causo de hoje partiu de uma constatação
incomum: há muito tempo não sofro uma queda.
Para mim, isso é completamente fora do normal. Sou uma
pessoa desastrada por nascença. Já caí no chão, correndo atrás de ônibus, em
buraco, da bike, de tudo quanto é jeito. Milagrosamente, só quebrei o cóccix
até agora, no aerobunda de Natal (descrevi o mico no causo http://causosdafefa.blogspot.com.br/2013/02/ai-meu-fiofo.html).
Mas tenho umas cicatrizes com histórias interessantes para contar.
Quando eu era criança, eu me machucava bastante. Na minha
época, os pais não embalavam os filhos no plástico-bolha, como fazem hoje. A
gente brincava na rua, ralava a pele no asfalto, na terra. Tínhamos mais
liberdade, eram outros tempos.
Meus pais, como todos, não gostavam de me ver machucada.
Levava broncas quando voltava para casa com alguma parte do corpo danificada. E
eles tinham um meio bastante pedagógico para me desencorajar a me machucar: o
famigerado Merthiolate. Quem foi criança nos anos 80 sabe, aquele treco ardia
feito “cabra da moléstia”. Chegava a ser educativo, eu tomava mais cuidado às
vezes só para escapar do Merthiolate.
Quando era realmente um acidente, meus pais eram bonzinhos e
passavam mercúrio-cromo em mim. Mas quando estavam bravos...
- Vem cá, vou fazer o curativo – dizia a minha mãe.
Eu via a cara dela e já sabia. Lá vinha o Merthiolate.
- Mãe, passa o mercúrio-cromo, Merthiolate dói muito!
- Não, vai ser o MERTHIOLATE!
Socorro! Às vezes, quando me machucava, nem contava para os
meus pais. Passava o que tinha à mão: sabão, um simples abanar de vento, ou
então outra coisa que era um verdadeiro tiro no pé, a água oxigenada. A bocó
aqui olhava, fascinada, enquanto o ferimento borbulhava ao entrar em contato
com o produto. Ardia feito uma desgraça, mas as bolhas me distraíam.
Criança se distrai com cada porcaria...
Quando estava no pré-primário (na minha época era assim,
como se chama hoje?), a minha escola sempre levava os alunos em excursões. Era
difícil eu voltar de um passeio inteira. Sempre que o ônibus chegava, lá estava
a minha mãe me esperando. A professora descia para encontrar os pais e logo
falava:
- Foi tudo bem, só uma criança se machucou...
Era eu. Outro passeio:
- Tá todo mundo bem, mas uma criança caiu na lama e perdeu
um pé do tênis...
Era eu. Mais um passeio:
- Ah, foi divertido! Só uma criança caiu de queixo no
chão...
Era eu. E no passeio seguinte:
- Foi ótimo! Mas uma criança rasgou as calças no
escorregador e voltou sem roupa...
Era eu!
Na adolescência, a minha sina continuou. Estava no colegial
(hoje é ensino médio, certo?) e, em um mês, eu caí três vezes, machucando o
mesmo joelho. Não deu mais para remendar a calça, tive que comprar um uniforme
novo.
Certo dia, nossa turma fez uma prova de química em um
sábado, e a matéria era bem extenuante. Estávamos trabalhando com o Diagrama de
Pauling e aquela distribuição de elétrons: 1s2 2s2 2p6 3s2 3p6 4s2 3d6 e por aí
vai. Não lembro para que serve, só sei que dava um trabalhão responder aos
exercícios. Saí da escola meio atordoada, ainda pensando nas respostas, quando
dei de cara, espetacularmente, com um poste! Caí sentada, feito uma pata choca,
para a alegria dos meus colegas de turma. É, eu era realmente desastrada!
Eu sempre me interessei por truques de mágica, mas fazia
alguns involuntariamente. O meu mais notório aconteceu em Ubatuba. Estava
andando com a minha família, calmamente, quando eu simplesmente desapareci.
Performance digna de David Copperfield. O que me aconteceu? Ora, caí num
buraco! Era profundo e razoavelmente visível. Mas não para a minha visão além
do alcance, certo? Levei um baita susto e, assim que me recuperei, comecei a
pedir por socorro.
Minha família sequer pensou que os gritos fossem meus. Eu
estava ao lado deles, certo? E a voz estava vindo das entranhas da terra, coisa
sinistra... mas mamãe, sabendo do meu histórico, olhou para trás e foi checar.
Quando me viu no buraco, soltou a frase que eu mais ouvi na minha infância/adolescência:
- O quê? Você caiu DE NOVO?
Sem comentários...
Já estava no cursinho pré-vestibular quando, num domingo,
fui assistir a uma palestra sobre João Goulart. Meus pais, naquele fim de
semana, resolveram me deixar sozinha e viajaram para Porto Alegre, onde temos
família. Até aí nada de mais, peguei meu famigerado ônibus e fui até o
cursinho, perto do metrô Ana Rosa.
O problema foi que, a caminho do auditório, eu torci o pé e
caí no chão.
Vejam bem, não foi só uma torcida. O pé virou para dentro, o
dedão do pé encostou na batata da minha perna, fez um barulho “toc” e me deixou
a ver galáxias, não estrelas. Aff, como doeu aquela bagaça!!
Eu joguei a mochila longe e rolei no chão, gritando de dor.
Imediatamente, formou-se uma rodinha, na qual pessoas inúteis, ao invés de me
ajudarem, ficavam me olhando rolar na calçada, sem ao menos oferecer ajuda.
Teve uma mulher que falou para mim, no melhor estilo “apoio moral”:
- É... deve estar doendo muito, né?
NÃO, SUA BOCÓ!
Pior que eu só pensei e nada disse. Mamãe criou uma
menininha educada em colégio de freiras e, naquela época, não retrucava nem
falava palavrões. Se acontecesse hoje, acho que daria uma voadora naquela
mulher!
Depois que passou o pico de dor, veio a triste constatação:
meu pé havia dobrado de tamanho. Inchado, roxo, latejando, doído... pensa em
mais adjetivos e vai acrescentando, foi bem por aí. Mas eu era uma aluna
“caxias”, sempre fui. Tinha a palestra para assistir, eu não queria perder,
estava incrivelmente focada no cursinho. E tomei a única decisão que uma nerd tomaria:
fui me arrastando até o auditório do Etapa num pé só, apoiando nos muros. Tudo
para não perder a palestra.
Confesso, mal me lembro do que assisti. O pé doía que era
uma desgraça. Mesmo assim, eu me senti melhor por não ter faltado (o
psicológico é tudo nessa vida...). Claro que, durante a palestra, meu pé
terminou de inchar e ficou uma coisa medonha. Por sorte (ou azar) eu não tirei
o tênis do pé, ou jamais conseguiria colocá-lo novamente e teria que ir
descalça para casa.
A coisa estava feia, e pensei: é, preciso de um ortopedista,
com urgência. Mas a bocó que vos escreve não estava com a carteira do convênio
na mochila. Sabem aquela adolescente que se acha o próprio “highlander”,
imortal? Pois é, eu tinha aquele pensamento. Tonta, para dizer o mínimo. Agora
teria que voltar para casa, pegar a carteirinha e ir a um médico.
Foi um tremendo perrengue voltar para “São Domingos City”,
onde moro. Se hoje já não tem transporte público por aqui, imagina a situação
vinte anos atrás, e num domingo. Levei quase 3 horas no trajeto, arrastando
corrente, enquanto meus pais curtiam o fim de semana em Imbé, cidade próxima a
Porto Alegre.
Quando finalmente voltei para casa, fui correndo procurar a
tal carteirinha. E cadê de achar a dita cuja? Nada! É, não tinha jeito, teria
que ligar para os meus pais e perguntar. Eis o diálogo:
- Oi, mãe! Tudo bem?
- Oi, filha! Aqui está uma delícia! Acabamos de chegar da
praia! Tudo bem por aí?
- Então, mãe... onde está a carteirinha do convênio?
Silêncio. Então ouço:
- O quê? Você caiu DE NOVO?
- Ah, mãe... snif...
Tive que contar toda a história e todos os detalhes
sórdidos. Só depois é que pude focar no cerne da questão: onde estava mesmo a
carteirinha?
Pois pasmem, caros leitores. A minha carteirinha estava com
a minha mãe. No Rio Grande do Sul. Gente, fala sério! Eu aqui e a minha
carteirinha lá nos confins do país, e agora?
Há 20 anos, não tínhamos a facilidade de ligar para o
convênio, pedir guia ou utilizar de qualquer outro artifício. Ou tinha a
carteirinha em mãos ou nada feito. Assim, não tive opção a não ser ligar para
uma amiga e me dirigir a um posto de saúde, no carro dela.
Sabem aqueles dias em que dá tudo errado? Então, realiza a
cena: cheguei ao posto de saúde e dou de cara com uma pessoa estirada no chão,
bem no saguão de entrada. Toda ensanguentada. Morta, obviamente. Baleado. Tive
que conter a ânsia e contornar o dito cujo para buscar atendimento. Realmente
promissor, não?
Esperei o tempo regulamentar da saúde pública para ser
atendida, já calçando um chinelinho e com o pé inchadíssimo e roxo. Fui fazer
um raio x. Agora sim, a sorte mudou, pois não tinha nada quebrado! Mas
precisaria imobilizar o pé.
Suspirei, resignada. Já esperava por isso. O que eu não
esperava foi o diálogo que se desenvolveu a partir daí. Disse ao médico:
- Doutor, poderia colocar aqueles saltinhos de bota no meu
gesso? É que eu estou fazendo cursinho, e andar de muleta vai me atrapalhar no
ônibus, e eu não posso perder aula.
- Não vai dar – disse o médico.
- Mas por quê?
- Porque, com o seu peso forçando o gesso, ele vai rachar...
vai precisar usar muleta mesmo.
Era só o que me faltava... perder minhas aulas do cursinho? Nem
pensar! Disse ao médico:
- Então não quero o gesso!
E fui embora, pisando duro (com um pé só), e sem o gesso.
Ok, foi uma atitude completamente sem nexo. Ok, precisava do
gesso. E não o coloquei! Acreditem, fiquei arrastando o pé inchado por meses,
sem imobilização e pegando o ônibus sabe-se lá de que forma, nem eu me lembro
com fazia isso. E, por incrível que pareça, nem meus pais contestaram a minha
atitude. Era uma vestibulanda feroz (focada demais, creio), mas
segui com as minhas aulas do cursinho desse jeito mesmo.
Eu só tomava medicamentos para a dor e tratava de colocar o
pé para cima na sala de aula. Como eu sempre sentava na “turma do gargarejo”, ajeitava
o pé todo estropiado no tablado do professor e ainda tinha a cara de pau de
avisar:
- Professor, cuidado aí com o meu pezinho, tá?
É, tem coisas na vida que só um vestibulando é capaz de
fazer. Mas tudo acabou bem, pois depois de alguns meses, o pé desinchou e não
tive qualquer sequela. Nadinha. Nem uma dorzinha, nem uma dificuldade de andar.
Nem sei se tive algum problema nos ligamentos. Se tive, sumiram.
E aí veio o excesso de confiança de novo, certo? Já estava
andando normalmente quando caí. De novo. E torci o outro pé, exatamente da
mesma maneira! Eu chorava de raiva:
- Arrgh, eu sou muito idiota mesmo!!
Como já estava um pouco mais “ixperta”, a torção não foi tão
feia, pois consegui me segurar no poste mais próximo antes que caísse de vez no
chão. Mas foi do mesmo jeitinho, o dedinho quase encostou na batata da perna e
fez um leve barulhinho de “toc”. Voltei para casa, arrastando corrente (mais
leve, desta vez) e, quando minha mãe me viu mancando do outro pé, soltou sua
frase patenteada:
- O quê? Você caiu DE NOVO?
É...
Mas as coisas começaram a se estabilizar da faculdade em
diante. Levava as minhas quedas básicas, mas nada sério. O problema foi quando
comecei novamente a pedalar. Conheci uma galera show e frequentava os pedais
noturnos pelas ruas de São Paulo. Eu, há anos sem andar de bicicleta, tive que
pegar novamente todo o traquejo da coisa. E não deu outra, as quedas
espetaculares voltaram. E o pior, eram frequentes!
Às vezes eu apenas arriava da bike, o começo foi bem
difícil. A maioria era causada por falta de perícia ou inexperiência. Às vezes,
era o bom e velho azar em ação!
Certa vez, estava pedalando na região de Perdizes com o
grupo, quando um companheiro de pedal nosso nos encontrou de carro. Eu olhei
para o lado e comecei a fazer piadinhas por ele estar dirigindo e não pedalando
conosco, e deixei de olhar para frente. Adivinha? Bati no colega da frente e
voei espetacularmente até o chão! Poderia ter cantado “I believe I can fly” no
processo, de tanto tempo que fiquei no ar. Após me espatifar no chão com a
graça e a beleza de um saco de batatas, fui acudida pelo pessoal. Eu, morrendo
de vergonha, só dizia:
- Gente, tá sussa, bóra pedalar!
O que muita gente não soube é que tive que ir ao pronto
socorro no dia seguinte. Na queda, bati a cabeça, mas como estava de capacete,
nada aconteceu. O problema foi o pescoço, fiquei uma semana sem poder olhar
para os lados, uma tortura!
Como continuei a pedalar apesar de tudo, fui sofrendo mais
quedas. Melhorei meu condicionamento físico também, mas demorei até parar de
cair tanto. Ainda mais quando cismei de andar clipada. Sabem o que é isso? A sapatilha de pedalar, que prende o seu pé
no pedal e otimiza o seu esforço físico. E cair com aquilo é a coisa mais fácil
do mundo. Basta esquecer de “desclipar” o pé e pronto: é só cair no chão feito
jaca. Mesmo com a bike parada!
Como eu não desisti de pedalar com sapatilha, demorei mais
do que o normal para controlar as quedas da bike. Hoje, pedalo sossegada quando
estou clipada. Afinal, uma hora a gente aprende! Mas até os guias dos passeios
de bike já estavam familiarizados com as minhas quedas mais frequentes. Em uma
delas, a Elen e o David, que são guias da Gobiking Expeditions (www.gobiking.com.br) e grandes amigos, ao
presenciarem mais uma queda minha, desta vez saindo do campus da USP,
parafrasearam a minha mãe:
- Você caiu DE NOVO, Fê?
Ah, a minha sina...
Para arrematar o causo, vou mostrar a vocês a única queda com
registro fotográfico: caí quando saía de um helicóptero! É, consegui essa
proeza, e está documentado o “antes” e o “depois”. Felizmente, no “durante”, a
fotógrafa Daniella Fernanda me ajudou a sair do chão!
Eu e Dani estávamos em Foz do Iguaçu, e fizemos o voo
panorâmico nas cataratas. A visão é maravilhosa, quem tiver a oportunidade, não
deixe de experimentar. Mas esta contadora de causos que vos fala não poderia
deixar passar a chance de dar vexame em grande estilo, mergulhando de “peixinho”
ao sair do helicóptero. Repara na graça e na beleza da cidadã no
“antes”:
E agora repara na tentativa de disfarçar a cara de dor no
“depois”:
Segundo a Daniella, eu parecia uma pata choca prestes a
levantar voo. Mas acabei pousando com a habilidade de um albatroz mesmo.
E você, leitor, considera-se uma pessoa desastrada, mesmo
depois de ler o presente texto? Se a resposta for afirmativa, me escreva, suas
histórias podem virar um causo!
Boa noite, pessoal!